"Avante para vossos barcos, filósofos!", exclama em "Gaia ciência". E em "Aurora": "E aonde, portanto, queremos chegar? Além do mar?". Nietzsche e a ideia da liberdade. Do ir além de todo "refúgio miserável". Um pensamento que tem uma responsabilidade grande, reflete Bento XVI citando – como já o havia feito na encíclica Deus Caritas est – seu compatriota filósofo: "Friedrich Nietzsche zombou da humildade e da obediência e as considerou como virtudes servis, que reprimem os homens. Colocou em seu lugar a dignidade e a liberdade absoluta do homem".
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 10-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Palavras muito mais significativas se considerarmos que o Papa, na manhã da quinta-feira na Basílica de São Pedro, falava aos sacerdotes durante a Missa Crismal: diante de cardeais, bispos e presbíteros que "renovam as promessas" antes das celebrações da Páscoa. Uma homilia refinada sobre o sentido da "consagração" como "sacrifício" de si, um "tirar do mundo e entregar a Deus" que, para os sacerdotes, "não é uma segregação", mas um doar-se totalmente, como Jesus, "sacerdote e vítima", que "se entrega ao Pai por nós" e reza pelos discípulos: "Consagra-os na verdade".
É a esse ponto que Bento XVI levantou o olhar: "Como isso está se realizando na nossa vida? Somos verdadeiramente permeados pela palavra de Deus? Ou, antes, o nosso pensamento se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Não são talvez as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos muitas vezes?". Daqui a referência a Nietzsche e ao desdenho da humildade em favor da liberdade absoluta. O Papa pede que aprendamos "de Cristo a reta humildade", certamente não "uma submissão errada, que não queremos imitar". E vê um perigo: "Há também a soberba destrutiva e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência".
Problema: as coisas estão assim? E até que ponto Nietzsche seria responsável por isso? "O Papa tem perfeitamente razão em se irritar com as liberdades absolutas e as soberbas viris, mas temo que a sua leitura de Nietzsche é afetada por uma interpretação velha", comenta Massimo Cacciari, autor de um ensaio sobre o "Jesus de Nietzsche", um tema que aparece também na sua obra mais recente, "Della cosa ultima".
"A liberdade de Nietzsche é problemática, não é a dos modernos que, pelo contrário, ele critica: sua visão está presente em Schelling, que será retomada por Heidegger, a liberdade não como algo que "tu tens", mas que "te tem". Mas não é suficiente: "O Zarathustra tem páginas em que ele indica na figura do além-do-homem [super-homem] a capacidade de doar tudo, de não ter nada para si: amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, diz. Há passagens em que a afinidade entre o Além-do-Homem e Jesus é fortíssima. De resto, a polêmica de Nietzsche contra o cristianismo está voltada à teologia paulina, entretanto mal entendida, e não à figura sinótica de Jesus".
Segundo Cacciari, enfim, "a grandeza de um filósofo imprescindível para a contemporaneidade deveria ser compreendida em toda a sua complexidade, senão a polêmica danifica a própria pregação como capacidade de assimilar em si as vozes discordantes. Jesus andava com aqueles que o respeitavam, era um narciso? Ou pelo contrário se voltava aos publicanos, ao centurião? 'Eu vos digo que nem em Israel encontrei uma fé tão grande!'. Por que a Igreja não se esforça em fazer o mesmo com Nietzsche e com a cultura contemporânea?".
Emanuele Severino, que dedicou ao filósofo alemão o livro "L'anello del ritorno", sorri: "Aos católicos, digo sempre que é preciso acertar seriamente as contas com a inevitabilidade desses pensamentos". De seu ponto de vista, entende o Papa: "Para a tradição, Deus está no centro da verdade, enquanto Nietzsche, precedido por Leopardi, mostra a impossibilidade de todo eterno e de todo divino. Consequência necessária é a negação de toda 'humildade' com relação ao divino. E a exaltação da liberdade e da soberba". Isso porém não tem a ver com as idéias correntes: "A liberdade de Nietzsche pressupõe que se saiba por que 'Deus está morto'. O ateísmo, o relativismo, o indiferentismo são eles mesmos superficiais e dogmáticos, não têm nada a ver com a radicalidade daquele pensamento. É necessário outra coisa para se chegar a Nietzsche e a Cristo!".
Em tudo isso, um estudioso nietzschiano como Gianni Vattimo reconhece que Bento XVI "tem razão sobre o desdenho da obediência", mas não o da humildade: "Nietzsche é um cristão inconsciente, ou que não queria reconhecer isso: um pouco pelo caminho do pai pastor protestante e um pouco porque amava o Evangelho, mas não a estrutura hierárquica da Igreja, como eu. Penso nas três metamorfoses que abrem o Zarathustra: o espírito do camelo se faz leão e se revolta contra as autoridades, mas no fim se muda em uma criança, 'é preciso uma santa afirmação'. E não era Jesus que dizia que devemos nos tornar como crianças?".
Pode ser, mas o filósofo católico Giovanni Reale não está convencido disso: "Nietzsche escreveu muitas coisas belas e coisas terríveis. O que ele apresentava como uma conquista se revelou terrível, Bento XVI tem razão. No fim, tivemos a liberdade absoluta. Mas, como dizia Bauman, ela chegou com um cartaz com preço, um preço muito salgado: o egoísmo, a solidão". Não é por acaso que o Papa tenha se voltado aos sacerdotes: "Eles têm a responsabilidade de dizer a Palavra. Eu não entendia: por que Jesus não deixou nada escrito? Eu entendi graças a Platão, no final do Fedro: não se escreve a verdade em rolos de papel, mas no coração dos homens".
Fonte: Unisinos
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 10-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Palavras muito mais significativas se considerarmos que o Papa, na manhã da quinta-feira na Basílica de São Pedro, falava aos sacerdotes durante a Missa Crismal: diante de cardeais, bispos e presbíteros que "renovam as promessas" antes das celebrações da Páscoa. Uma homilia refinada sobre o sentido da "consagração" como "sacrifício" de si, um "tirar do mundo e entregar a Deus" que, para os sacerdotes, "não é uma segregação", mas um doar-se totalmente, como Jesus, "sacerdote e vítima", que "se entrega ao Pai por nós" e reza pelos discípulos: "Consagra-os na verdade".
É a esse ponto que Bento XVI levantou o olhar: "Como isso está se realizando na nossa vida? Somos verdadeiramente permeados pela palavra de Deus? Ou, antes, o nosso pensamento se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Não são talvez as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos muitas vezes?". Daqui a referência a Nietzsche e ao desdenho da humildade em favor da liberdade absoluta. O Papa pede que aprendamos "de Cristo a reta humildade", certamente não "uma submissão errada, que não queremos imitar". E vê um perigo: "Há também a soberba destrutiva e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência".
Problema: as coisas estão assim? E até que ponto Nietzsche seria responsável por isso? "O Papa tem perfeitamente razão em se irritar com as liberdades absolutas e as soberbas viris, mas temo que a sua leitura de Nietzsche é afetada por uma interpretação velha", comenta Massimo Cacciari, autor de um ensaio sobre o "Jesus de Nietzsche", um tema que aparece também na sua obra mais recente, "Della cosa ultima".
"A liberdade de Nietzsche é problemática, não é a dos modernos que, pelo contrário, ele critica: sua visão está presente em Schelling, que será retomada por Heidegger, a liberdade não como algo que "tu tens", mas que "te tem". Mas não é suficiente: "O Zarathustra tem páginas em que ele indica na figura do além-do-homem [super-homem] a capacidade de doar tudo, de não ter nada para si: amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, diz. Há passagens em que a afinidade entre o Além-do-Homem e Jesus é fortíssima. De resto, a polêmica de Nietzsche contra o cristianismo está voltada à teologia paulina, entretanto mal entendida, e não à figura sinótica de Jesus".
Segundo Cacciari, enfim, "a grandeza de um filósofo imprescindível para a contemporaneidade deveria ser compreendida em toda a sua complexidade, senão a polêmica danifica a própria pregação como capacidade de assimilar em si as vozes discordantes. Jesus andava com aqueles que o respeitavam, era um narciso? Ou pelo contrário se voltava aos publicanos, ao centurião? 'Eu vos digo que nem em Israel encontrei uma fé tão grande!'. Por que a Igreja não se esforça em fazer o mesmo com Nietzsche e com a cultura contemporânea?".
Emanuele Severino, que dedicou ao filósofo alemão o livro "L'anello del ritorno", sorri: "Aos católicos, digo sempre que é preciso acertar seriamente as contas com a inevitabilidade desses pensamentos". De seu ponto de vista, entende o Papa: "Para a tradição, Deus está no centro da verdade, enquanto Nietzsche, precedido por Leopardi, mostra a impossibilidade de todo eterno e de todo divino. Consequência necessária é a negação de toda 'humildade' com relação ao divino. E a exaltação da liberdade e da soberba". Isso porém não tem a ver com as idéias correntes: "A liberdade de Nietzsche pressupõe que se saiba por que 'Deus está morto'. O ateísmo, o relativismo, o indiferentismo são eles mesmos superficiais e dogmáticos, não têm nada a ver com a radicalidade daquele pensamento. É necessário outra coisa para se chegar a Nietzsche e a Cristo!".
Em tudo isso, um estudioso nietzschiano como Gianni Vattimo reconhece que Bento XVI "tem razão sobre o desdenho da obediência", mas não o da humildade: "Nietzsche é um cristão inconsciente, ou que não queria reconhecer isso: um pouco pelo caminho do pai pastor protestante e um pouco porque amava o Evangelho, mas não a estrutura hierárquica da Igreja, como eu. Penso nas três metamorfoses que abrem o Zarathustra: o espírito do camelo se faz leão e se revolta contra as autoridades, mas no fim se muda em uma criança, 'é preciso uma santa afirmação'. E não era Jesus que dizia que devemos nos tornar como crianças?".
Pode ser, mas o filósofo católico Giovanni Reale não está convencido disso: "Nietzsche escreveu muitas coisas belas e coisas terríveis. O que ele apresentava como uma conquista se revelou terrível, Bento XVI tem razão. No fim, tivemos a liberdade absoluta. Mas, como dizia Bauman, ela chegou com um cartaz com preço, um preço muito salgado: o egoísmo, a solidão". Não é por acaso que o Papa tenha se voltado aos sacerdotes: "Eles têm a responsabilidade de dizer a Palavra. Eu não entendia: por que Jesus não deixou nada escrito? Eu entendi graças a Platão, no final do Fedro: não se escreve a verdade em rolos de papel, mas no coração dos homens".
Fonte: Unisinos