quarta-feira, 1 de abril de 2009

Concepção Filosófica do Afeto

Na filosofia, entende-se como afeto, em seu senso comum, as emoções positivas que se referem a pessoas e que não têm o caráter dominantemente totalitário da paixão. Enquanto as emoções podem se referir a pessoas e coisas, os afetos são emoções que acompanham algumas relações interpessoais, das quais fica excluída a dominação pela paixão. Daí a temporalidade indicada pelo adjetivo afetuoso que traduz atitudes como a bondade, a benevolência, a inclinação, a devoção, a proteção, o apego, a gratidão, a ternura, etc."Afeição é usado filosoficamente em sua maior extensão e generalidade, porquanto designa todo estado, condição ou qualidade que consiste em sofrer uma ação sendo influenciado ou modificado por ela" Abbagnano (1971). Implica, portanto, em uma ação sofrida. Diz-se que um metal é afetado pelo ácido, e que alguém tem uma afecção pulmonar, mas as palavras afeto e paixão são reservadas aos humanos.Aristóteles chamou de afetivas as qualidades sensíveis porque cada uma delas produz uma afeição dos sentidos. Ao declarar no princípio De anima o objetivo de sua investigação, mostra que visava conhecer, além da natureza e da substância da alma, tudo o que acontece à alma, tanto as afeições que lhes são próprias, quanto aquelas que tem em comum com os animais. Mas, a palavra afeição não só designa o que acontece à alma, como ainda qualquer modificação que ela sofra. Esse caráter passivo das afeições da alma parecia ameaçar a autonomia racional. Daí os estóicos marcarem uma dicotomia que chega aos nossos dias, as afeições e por extensão as emoções seriam irracionais. Com essa polarização o irracional (não humano, ou animal) toma conotação moralmente negativa. Para a afeição são criadas expressões como perturbattio animi, ou concitatio nimia, usadas por Cícero e Sêneca. Vem de muito longe a questão do menosprezo ao afeto como menor, frente ao racionalismo desejável e triunfante. A noção de que a afeição pode ser boa ou má segue até Santo Agostinho e os escolásticos, que mantêm o ponto de vista aristotélico da neutralidade da afeição. Entre o bem e mal, esclarece Santo Agostinho, as afeições precisam ser moderadas pela razão, ponto de vista também defendido por Tomás de Aquino.As questões valorativas sobre a qualidade ou modificações produzidas no ser humano pela afeição (como ação externa) são mantidas na tradição filosófica. É expressa geralmente com a palavra passio e que a partir da metade do século XVIII assume seu significado moderno de paixão.O tema faz parte da reflexão de praticamente todos os filósofos, desde a Antiguidade até nossos dias. Sem esgotá-lo, cada autor traz novas luzes ou novos conflitos sobre o afeto. Spinoza, ao tratar de uma questão anteriormente polemizada sobre a ação da afeição, nomeia seus subprodutos indispensáveis: o agente e o paciente. É essa terminologia que ele usa para definir o que chama de affectus e que nós chamamos de emoções e sentimentos. Ele considera as emoções, os sentimentos e as paixões como impotência da alma que pode ser vencida desde que transformada em idéias claras e distintas. Assim a idéia se distingue apenas racionalmente da emoção. De novo encontramos a desvalorização do afeto como indesejável ou distúrbio, e já apresentado com seu eficiente antídoto, sua redução ou anulação pela racionalidade. Spinoza vai mais longe apontando que Deus é desprovido de idéias confusas e que, portanto, está isento da afeição. Este nos parece um argumento grandiloqüente sobre a racionalidade como a forma mais pura, verdadeira e mesmo divina de exercício da mente humana. Em nossos dias a questão provoca divergências importantes pela concepção de um Deus desumanizado, que por sua racionalidade estaria impedido de amar o que criou ou de acolher os que dele se aproximam. O triunfo dessa racionalidade e a anulação do afeto sugerem uma defesa contra o desconhecido, o incontrolável dos afetos despertados.Esta complicada relação de causa e efeito entre Deus e suas criaturas provoca debates que poderíamos dizer apaixonados. Platão na República, livro VI, diz que "Deus por ser bom não é causa de tudo, como se diz comumente. Para o que há de bem Ele é o único autor, mas para o que há de mal é preciso encontrar a causa fora de Deus". Isto nos leva a dizer que o afeto não é de Deus por ser mau e não se pode reclamar que ele tenha sido criado por Deus. Nessa consideração do afeto entre Deus e os homens poderíamos também tomar as palavras de São Paulo: "a sabedoria dos homens é loucura aos olhos de Deus e a sabedoria de Deus é a loucura aos olhos dos homens". Platão diz também que a sabedoria dos homens é a loucura aos olhos do sábio e que a sabedoria do sábio é loucura aos olhos dos homens. Isto nos remete à questão da falta de objetividade do saber ou das incertezas do que costumamos chamar de verdade, possível na pureza do mundo intelectual, mas sujeita à impossibilidade do encontro de saberes (verdades). Resta-nos fazer uma reflexão sobre qual o caminho da verdade na questão do afeto, tão sujeita a juízo de valor.É bom lembrar que essas questões inconciliáveis do afeto estão permeadas pelo sofrimento humano. A submissão na fé ou a aceitação complacente das concepções religiosas podem ser questionadas pelo que se costuma chamar de livre pensamento. Mas, este caminho tantas vezes considerado como uma espécie de razão humana, não é senão um outro tipo de afeto, chamado sentimento de liberdade. Esta palavra mágica é, entretanto, relacionada à razão humana e se constitui um orgulho nosso. Aqui vale lembrar uma importante reflexão de Nietzsche (1881): "é este orgulho, porém, que nos torna hoje quase impossível sentir como os imensos períodos de moralidade do costume que precederam a história universal como a verdadeira e decisiva história que determinou o caráter da humanidade, em que o sofrimento era virtude, a crueldade era virtude, a dissimulação era virtude, a vingança era virtude, a negação da razão era virtude, enquanto o bem-estar era perigo, a compaixão era perigo, ser objeto de compaixão era ofensa, a loucura era coisa divina, a mudança era imoral e prenhe de ruína!" O filósofo ainda de modo provocativo pergunta se é possível acreditar que isso tudo mudou e conseqüentemente a humanidade trocou de caráter. Sua resposta nos coloca frente à questão do bem e do mal, a virtude e a cobiça. Para Nietzsche este não é um jogo racional, mas o triunfo da crueldade pela adesão à privação e à moralidade. Como vemos, as dificuldades da contingência humana resvalam sempre na questão do afeto, que seria em última instância o filão da possível felicidade humana.
Fonte: Estud. psicanal. n.28 Belo Horizonte set. 2005