sábado, 25 de abril de 2009

O Papa e o filósofoNietzsche, grande duelo alemão

"Avante para vossos barcos, filósofos!", exclama em "Gaia ciência". E em "Aurora": "E aonde, portanto, queremos chegar? Além do mar?". Nietzsche e a ideia da liberdade. Do ir além de todo "refúgio miserável". Um pensamento que tem uma responsabilidade grande, reflete Bento XVI citando – como já o havia feito na encíclica Deus Caritas est – seu compatriota filósofo: "Friedrich Nietzsche zombou da humildade e da obediência e as considerou como virtudes servis, que reprimem os homens. Colocou em seu lugar a dignidade e a liberdade absoluta do homem".
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 10-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Palavras muito mais significativas se considerarmos que o Papa, na manhã da quinta-feira na Basílica de São Pedro, falava aos sacerdotes durante a Missa Crismal: diante de cardeais, bispos e presbíteros que "renovam as promessas" antes das celebrações da Páscoa. Uma homilia refinada sobre o sentido da "consagração" como "sacrifício" de si, um "tirar do mundo e entregar a Deus" que, para os sacerdotes, "não é uma segregação", mas um doar-se totalmente, como Jesus, "sacerdote e vítima", que "se entrega ao Pai por nós" e reza pelos discípulos: "Consagra-os na verdade".
É a esse ponto que Bento XVI levantou o olhar: "Como isso está se realizando na nossa vida? Somos verdadeiramente permeados pela palavra de Deus? Ou, antes, o nosso pensamento se deixa modelar incessantemente por tudo o que se diz e faz? Não são talvez as opiniões predominantes os critérios pelos quais nos regulamos muitas vezes?". Daqui a referência a Nietzsche e ao desdenho da humildade em favor da liberdade absoluta. O Papa pede que aprendamos "de Cristo a reta humildade", certamente não "uma submissão errada, que não queremos imitar". E vê um perigo: "Há também a soberba destrutiva e a presunção, que desagregam qualquer comunidade e acabam na violência".
Problema: as coisas estão assim? E até que ponto Nietzsche seria responsável por isso? "O Papa tem perfeitamente razão em se irritar com as liberdades absolutas e as soberbas viris, mas temo que a sua leitura de Nietzsche é afetada por uma interpretação velha", comenta Massimo Cacciari, autor de um ensaio sobre o "Jesus de Nietzsche", um tema que aparece também na sua obra mais recente, "Della cosa ultima".
"A liberdade de Nietzsche é problemática, não é a dos modernos que, pelo contrário, ele critica: sua visão está presente em Schelling, que será retomada por Heidegger, a liberdade não como algo que "tu tens", mas que "te tem". Mas não é suficiente: "O Zarathustra tem páginas em que ele indica na figura do além-do-homem [super-homem] a capacidade de doar tudo, de não ter nada para si: amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, diz. Há passagens em que a afinidade entre o Além-do-Homem e Jesus é fortíssima. De resto, a polêmica de Nietzsche contra o cristianismo está voltada à teologia paulina, entretanto mal entendida, e não à figura sinótica de Jesus".
Segundo Cacciari, enfim, "a grandeza de um filósofo imprescindível para a contemporaneidade deveria ser compreendida em toda a sua complexidade, senão a polêmica danifica a própria pregação como capacidade de assimilar em si as vozes discordantes. Jesus andava com aqueles que o respeitavam, era um narciso? Ou pelo contrário se voltava aos publicanos, ao centurião? 'Eu vos digo que nem em Israel encontrei uma fé tão grande!'. Por que a Igreja não se esforça em fazer o mesmo com Nietzsche e com a cultura contemporânea?".
Emanuele Severino, que dedicou ao filósofo alemão o livro "L'anello del ritorno", sorri: "Aos católicos, digo sempre que é preciso acertar seriamente as contas com a inevitabilidade desses pensamentos". De seu ponto de vista, entende o Papa: "Para a tradição, Deus está no centro da verdade, enquanto Nietzsche, precedido por Leopardi, mostra a impossibilidade de todo eterno e de todo divino. Consequência necessária é a negação de toda 'humildade' com relação ao divino. E a exaltação da liberdade e da soberba". Isso porém não tem a ver com as idéias correntes: "A liberdade de Nietzsche pressupõe que se saiba por que 'Deus está morto'. O ateísmo, o relativismo, o indiferentismo são eles mesmos superficiais e dogmáticos, não têm nada a ver com a radicalidade daquele pensamento. É necessário outra coisa para se chegar a Nietzsche e a Cristo!".
Em tudo isso, um estudioso nietzschiano como Gianni Vattimo reconhece que Bento XVI "tem razão sobre o desdenho da obediência", mas não o da humildade: "Nietzsche é um cristão inconsciente, ou que não queria reconhecer isso: um pouco pelo caminho do pai pastor protestante e um pouco porque amava o Evangelho, mas não a estrutura hierárquica da Igreja, como eu. Penso nas três metamorfoses que abrem o Zarathustra: o espírito do camelo se faz leão e se revolta contra as autoridades, mas no fim se muda em uma criança, 'é preciso uma santa afirmação'. E não era Jesus que dizia que devemos nos tornar como crianças?".
Pode ser, mas o filósofo católico Giovanni Reale não está convencido disso: "Nietzsche escreveu muitas coisas belas e coisas terríveis. O que ele apresentava como uma conquista se revelou terrível, Bento XVI tem razão. No fim, tivemos a liberdade absoluta. Mas, como dizia Bauman, ela chegou com um cartaz com preço, um preço muito salgado: o egoísmo, a solidão". Não é por acaso que o Papa tenha se voltado aos sacerdotes: "Eles têm a responsabilidade de dizer a Palavra. Eu não entendia: por que Jesus não deixou nada escrito? Eu entendi graças a Platão, no final do Fedro: não se escreve a verdade em rolos de papel, mas no coração dos homens".
Fonte: Unisinos

Luta ecológica e o fracasso de Deus na história

Para a maioria das pessoas que crêem em Deus, soa muito estranha, para não dizer herética, a afirmação de que Deus pode ‘falhar’ no seu plano de salvação da história. Como Deus pode falhar? Isso significaria que ele não é todo-poderoso? Mais ainda, isso significaria que a vitória das nossas lutas e as dos povos oprimidos não está garantida pela promessa de Deus?Eu penso que estamos diante de um nó fundamental nas nossas reflexões teológicas e existenciais que fazemos a partir e sobre as nossas esperanças e lutas. Se levarmos a sério o problema de sustentabilidade sócio-ambiental, precisamos abdicar da noção de Deus que, de um jeito ou outro, conduzirá as nossas lutas à vitória e a história humana à plenitude de harmonia e vida. Se reafirmamos a crença de que Deus "é o Senhor da história" e que, por isso, os "justos vencerão", a denúncia deque o nosso estilo de vida e o sistema de produção e consumo de bens representam um grande perigo para o futuro da humanidade não tem muito sentido.Quando uma afirmação teológica ou filosófica de caráter "metafísico" (como a de que história caminha necessariamente para a sua plenitude) entra em contradição com as situações concretas da vida e com as lutas sociais importantes, precisamos repensar essas teorias. As imagens de Deus que a tradição bíblica nos apresenta na sua história desembocam, não na de um Deus todo-poderoso que dirige a história, mas de um Deus-Amor que chama a humanidade para a liberdade/libertação. Amor só é amor quando proposto e vivido na liberdade. Como disse Paulo, "foi para a liberdade que Cristo nos libertou". E na história humana, a liberdade só é liberdade quando há possibilidade de erro e do fracasso. Isto é, em linguagem religiosa, podemos dizer que Deus da liberdade assumiu o risco de que a história pudesse terminar em fracasso, que o seu "plano" pudesse fracassar, para que a humanidade pudesse conhecer a Deus como Amor-Liberdade.Se for assim, qual é então o "papel" de Deus ou da fé em Deus Amor-Liberdade na luta ecológica? Eu quero propor uma pista a partir de um pedido da Irmã Dorothy Stang, feito por telefone ao seu amigo e companheiro de luta Felício, no dia em que foi assassinada: "Felício, nunca desista, está me ouvindo? Você precisa continuar a luta. Você não deve desistir e você não deve abandonar nosso povo, compreende? Você precisa continuar lutando porque Deus está com você’."Qual é a imagem ou noção de Deus que está por trás dessa afirmação-pedido? Com certeza, não é a imagem de um Deus que garante a libertação dos pobres e o encaminhamento da história à sua plenitude. Muito menos, a imagem de um Deus que está por detrás da ordem natural e social, como o seu fundamento. Deus que é invocado ou evocado aqui é um que chama, interpela para a luta para modificar a realidade. Mas, que não garante a vitória dos pobres e nem o cumprimento das promessas de um mundo justo.Deus que aparece no apelo da Irmã Dorothy é um Deus que fundamenta o apelo dela ao seu amigo para que não desista de lutar pelos mais pobres. Nada mais do que isso! Ele precisa lutar porque Deus está com ele! Apesar de todas as dificuldades e frustrações, a Irmã Dorothy, que parece pressentir a sua morte após muitas ameaças e tentativas de assassinato, apela ao seu amigo que não desista, porque Deus está com ele. Deus aparece aqui como um fundamento sem fundo firme, que justifica e interpela para o compromisso com os pobres e injustiçados, e com a defesa da criação. Um fundamento que se sustenta na medida em que responde à interpelação dos mais sofridos e injustiçados, na imaginação utópica de um mundo diferente, social e ambientalmente justo e sustentável. Uma imaginação nascida do desejo de um mundo mais humano e nutrida na recordação dos povos bíblicos ou não que também deram suas vidas por ela.Fonte: Jung Mo Sung
Teólogo, professor de pós-graduação em Ciências da Religião UMES

Liderança errática de Bento XVI gera crise na Igreja

Para o vaticanista Marco Politi, papa governa a Igreja Católica de forma "solitária" e inábil; estilo contrasta com sua atuação intelectual. MARCO POLITI, vaticanista do jornal italiano "La Repubblica" e um dos maiores conhecedores da política interna da Igreja Católica, diz que o pontificado de Bento 16 é errático, e que o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé se comporta de modo "paradoxal" em relação à sua conhecida clareza intelectual. Para o jornalista, tal estilo tem gestado uma "crise subterrânea" entre os católicos desde que Joseph Ratzinger, que completou ontem quatro anos à frente da instituição, foi eleito papa.
"O paradoxo deste pontificado é que Ratzinger, como teólogo e pensador, é muito claro. Mas, como governante, dá passos falsos e depois é sempre obrigado a pedir desculpas, a se justificar e se explicar", afirma o vaticanista.Para Politi, o padrão existe em parte por causa do estilo de "governo solitário" próprio a Bento 16. O papa, ele diz, "não considera as consultas e não presta atenção aos sinais que vêm do exterior". "Ele, na realidade, tende a decidir tudo sozinho." Autor de diversos livros sobre a igreja -o mais recente, publicado na Itália, é "A Igreja do Não" (La Chiesa del No)-, Politi recebeu a Folha em Roma para esta entrevista.FOLHA - Qual é sua avaliação de Bento 16?
MARCO POLITI - Desde as primeiras intervenções, ele nunca delineou um programa. Insiste no ponto de que é preciso tutelar a integridade da fé. E quer mostrar que o cristianismo é uma fé jovial, não um pacote de regras. Essa é sua convicção profunda, sua linha de pregador, e no entanto sua linha como líder timoneiro, nesses anos, foi a de um constante ziguezague.
FOLHA - Falta união na Cúria?
POLITI - É errado dizer que o papa não consegue governar porque há uma oposição na Cúria [espécie de "ministério" da igreja, formado por cardeais]. A Cúria, por tendência, segue sempre o papa que reina. Mas há uma desorientação dentro da Cúria porque durante o pontificado de Bento 16 houve diversos incidentes que não deveriam ter acontecido. Como, por exemplo, aquele com o mundo islâmico depois do discurso na Universidade de Regensburg [Alemanha], com os lefebvrianos e tantos outros.
FOLHA - Por que o sr. acha que Bento 16 sofre de "solidão"?
POLITI - Bento 16 está sozinho. Não porque exista um partido que trabalhe contra ele. Mas por causa de seu governo solitário, que não considera as consultas e não presta atenção aos sinais que vêm do exterior. O problema é que o papa, na realidade, tende a decidir tudo sozinho. Ele não escuta antecipadamente as sugestões que poderiam evitar a explosão de certos casos.
FOLHA - A decisão de Bento 16 de reabilitar o missal anterior ao Concílio Vaticano 2, que inclui a prece da Sexta-Feira Santa para a conversão dos judeus, provocou críticas do judaísmo. Como o sr. analisa a relação de Bento 16 com os judeus?
POLITI - A questão dos judeus é um exemplo da esquizofrenia que existe neste pontificado. Quero dizer, desde o ponto de vista do governo da igreja, porque, pessoalmente, Bento 16 é muito ligado ao mundo hebraico e à tradição hebraica. Durante a missa de inauguração do seu pontificado, ele falou dos cristãos, dos judeus, mas não falou dos muçulmanos.Porém o seu desejo de encontrar um compromisso com os lefebvrianos fez com que ele, na liturgia pré-conciliar tridentina, admitisse para a Sexta-Feira Santa uma fórmula ambígua que, embora de maneira suave, volta a sublinhar a necessidade da conversão dos judeus.Isso naturalmente provocou mau humor que em seguida explodiu com o caso Williamson. O paradoxo é que ele procurou sempre um compromisso com os lefebvrianos e acabou não conseguindo convencê-los a aceitar o Concílio Vaticano 2.
FOLHA - Bento 16 admitiu falhas na reversão da excomunhão dos lefebvrianos, enviando uma carta aos bispos católicos, na qual reconheceu que existe uma batalha dentro da Igreja "que morde e devora". O senhor acha que há um problema de comunicação dentro da Igreja?
POLITI - O paradoxo deste pontificado é que Ratzinger, como teólogo e pensador, é muito claro. Mas, como governante, dá passos falsos e depois é sempre obrigado a pedir desculpas, a se justificar e se explicar.Foi o que aconteceu com os muçulmanos no discurso em Regensburg. Também aconteceu na viagem ao Brasil, quando afirmou que a evangelização não foi imposta aos índios pelos conquistadores. Igualmente com o caso dos lefebvrianos.A carta que ele escreveu aos bispos do mundo inteiro é um documento da sua sinceridade e também de transparência da sua alma. Ao mesmo tempo é um sinal de fragilidade da sua liderança. Porque quando se diz que na igreja há católicos prontos a atacar o papa, então os casos são dois: ou o pontífice vê cada crítica como um ataque, e isso para um líder é um erro, ou realmente existe abaixo da superfície uma crise profunda da sua liderança.
FOLHA - Bento 16 nomeou o padre Gerhard Maria Wagner como bispo de Linz, na Áustria, e depois recuou. Porque o papa fez essa nomeação?
POLITI - Esse é o caso mais grave, do ponto de vista eclesiástico, da situação problemática da liderança de Bento 16. Porque nos tempos modernos nunca aconteceu que um papa, que para o direito eclesiástico é onipotente, nomeasse um bispo e, depois, a oposição de um episcopado nacional inteiro o obrigasse a cancelar a nomeação.Esse foi o sinal mais grave da crise subterrânea que existe na Igreja Católica.
FOLHA - É possível comparar Bento 16 a Pio 12 que, em 1949, recebeu duras criticas pela excomunhão dos comunistas e outras posições políticas durante a Guerra Fria?
POLITI - Eu não faria esta comparação porque Pio 12, do ponto de vista da liderança, era um papa forte. Ele poderia ser criticado, e foi, mas a máquina do Vaticano funcionava perfeitamente. Enquanto que com Bento 16 temos a impressão de desorientação e estagnação.O papa sente os problemas entre igreja e mundo moderno. Mas é indeciso em fazer escolhas para reformas. Há anos ele tem projetos na gaveta, desde quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Um desses era a reforma para a anulação do casamento, deixando mais poder aos bispos ao invés de centralizar todo o procedimento em Roma como instância final.Esses projetos de reforma também poderiam resolver o problema da comunhão negada aos divorciados que se casaram de novo. Mas Bento 16 parece que não tem a coragem de fazer essas reformas.
FOLHA - O sr. pode comentar o caso brasileiro do arcebispo de Olinda e Recife, que excomungou os adultos envolvidos no aborto em uma menina de 9 anos. O Vaticano reagiu tarde demais?
POLITI - É urgente que a igreja tenha uma atitude mais humana, mais misericordiosa com problemas como o divórcio, o aborto, a pesquisa científica. Uma tomada de posição como a do bispo de Recife, que num primeiro momento foi confirmada pelo Vaticano, é absolutamente impensável e vai contra o sentimento comum dos fiéis. Muitas pessoas devotas e apaixonadas pela própria fé se sentem incompreendidas e distantes da igreja hierárquica. Existe um buraco entre igreja hierárquica e fiéis comuns, e essa não é uma questão de direita ou esquerda.
Marco Politi, vaticanista
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2004200915.htm